Ia resenhar "Os Filhos de Húrin", mas não posso deixar de postar esse achado. É uma resenha completa e sentimentalista, capaz de evocar sensações provocadas pelo próprio livro. É uma resenha da imprensa internacional da época da publicação do livro, da revista eletrônica Salon.com, e eu achei na Valinor.
É bem longa, mas não é cansativa, e é perfeita e condizente, misturando fatos históricos da vida de Tolkien.
Senhor das ruínas
Christopher, filho de J.R.R. Tolkien,
passou mais de 30 anos montando fragmentos que seu pai deixou para
trás. Agora, os leitores podem descobrir o que aconteceu 6.000 anos
antes de Bilbo Bolseiro encontrar o Um Anel.
por Andrew o'Hehir
Depois de alguns capítulos da narrativa de "The Children of Húrin", o
livro mais ou menos novo mais ou menos escrito por J.R.R. Tolkien, um
carpinteiro aleijado chamado Sador contempla seu trabalho abandonado
com emoções misturadas. Sador é um servo fiel de Húrin, senhor da Casa
de Hador na terra de Dor-lómin, e estava esculpindo uma grande cadeira
para seu mestre. Mas, meses antes, Húrin cavalgou para uma batalha que
terminou em derrota terrível. Ele não retornou, e suas terras foram
conquistadas e pilhadas por forasteiros. Assim, Sador deixou de
trabalhar na cadeira, e ela "foi enfiada num canto, incompleta".
Enquanto tenta decidir se deve desmontar a cadeira e usá-la como lenha
no inverno, Sador conversa com Túrin, o filho pequeno de Húrin que logo
será mandado para o exílio e tornar-se-á o herói andante e amaldiçoado
dessa história sombria, sangrenta e apaixonante. "Perdi meu tempo", diz
Sador sobre sua longa labuta, "embora as horas parecessem agradáveis.
Mas todas as coisas desse tipo são de vida curta; e a alegria da
criação é seu único fim, imagino."
É impossível não ouvir John Ronald Reuel Tolkien repreendendo ou
consolando a si mesmo com essas palavras. Ao morrer, em 1973, Tolkien
deixou para trás as ruínas impublicáveis de um imenso conjunto de
literatura lendária, englobando uma história imaginária inteira do
mundo, da criação até épocas quase modernas. Os grandes episódios
heróicos dessa história – os elementos que ele considerava os mais
importantes – foram escritos apenas de forma sumária ou em fragmentos,
apesar de numerosas tentativas de transformá-los em prosa narrativa ou
poesia épica. Ele teve um sucesso acadêmico significativo como
lingüista e filólogo em Oxford, mas a maior parte de sua carreira
literária foi gasta desperdiçando energia em projetos que Tolkien nunca
completava. Ele era atormentado por bloqueios criativos, humores
sombrios e numerosas mudanças de rumo. Enfiou muitas cadeiras
incompletas num canto.
Tolkien ainda poderia ser recordado dessa maneira por algum grupelho
minúsculo de admiradores, se não fosse pela única parte de sua história
- na mente dele algo relativamente sem importância, tirado dos estágios
posteriores de seu "legendarium", mas que tinha um foco unicamente
íntimo e pessoal – que ele transformou numa narrativa de larga escala.
Tolkien tinha 62 anos quando publicou o primeiro volume de "O Senhor
dos Anéis", sua obra-prima de fantasia responsável por definir esse
gênero, e mais de 70 quando a popularidade explosiva do livro o tornou
rico e famoso. Não há como negar que a história do hobbit Frodo e de
seu pequeno grupo de companheiros, que encaram uma perigosa jornada com
o Um Anel de Sauron, o Senhor do Escuro, está entre os livros mais
queridos já publicados. Inevitavelmente, para a maioria de seus
leitores o enorme conjunto de tradições por trás do livro não passa de
um pano de fundo curioso, cheio de genealogias incompreensíveis,
línguas inventadas e nomes impronunciáveis.
Contudo, como bem sabe o universo de fãs viciados de Tolkien – um
universo que nem é tão pequeno, aliás – o autor tinha imaginado e
examinado cada detalhe de sua criação, de forma tão detalhada quanto
havia feito Ilúvatar, o equivalente de Javé que criou a Terra e deu
vida a Elfos e Homens. (A linguagem de Tolkien, assim como sua visão de
mundo, nunca é neutra em termos de gênero.) Nenhum autor de fantasia ou
de qualquer outro gênero jamais construiu um mundo com tanta densidade
histórica e lingüística; chega a parecer que esse imenso trabalho de
arquiteto exauriu Tolkien e, com exceção da narrativa de "O Senhor dos
Anéis", não lhe tenha sobrado energia para contar suas histórias.
Por mais de 30 anos, Christopher Tolkien, que trabalha como
testamenteiro literário de seu pai, tem revelado fragmentos e pedaços
do baú tolkieniano, quase como um ferreiro anão tentando reforjar uma
grande espada élfica a partir de agulhas e lascas espalhadas. Embora "O
Silmarillion" tenha sido um best-seller quando foi publicado em 1977,
por exemplo, só os fãs mais durões de Tolkien atravessaram seus
sumários secos e empolados de grandes feitos do passado distante. O
próprio Christopher Tolkien escreveu, com seu circunlóquio
característico, que "o estilo e forma de compêndio ou epítome de 'O
Silmarillion', com sua sugestão de eras de poesia e 'tradição' por trás
deles, evoca fortemente um senso de 'histórias não-contadas', mesmo
quando elas são contadas. A 'distância' nunca se perde. Não há urgência
narrativa, a pressão e o medo do evento imediato e desconhecido. Não
vemos as Silmarils do mesmo jeito que vemos o Anel."
Christopher Tolkien tem hoje 81 anos, a mesma idade que o pai dele
quando morreu, e pode-se imaginar que "The Children of Húrin" é sua
última e melhor tentativa de contar uma das grandes "histórias
não-contadas" de Tolkien em algo próximo a uma forma completa. Ele
trabalhou de forma contínua e árdua para reunir pedaços de manuscritos
que aparentemente recuam até 1918, quando Tolkien concebeu
originalmente a história, e que continuam quase até o fim da vida dele.
A história de Húrin de Dor-lómin, de seu filho Túrin e da luta fadada
ao fracasso dos dois contra Morgoth (o "Grande Inimigo" de Elfos e
Homens, senhor e mestre de Sauron) foi contada duas vezes antes,
primeiro em "O Silmarillion" e novamente no volume "Contos Inacabados"
(1980), editado por Christopher. Ela emerge aqui pela primeira vez como
um relato de aventura, com toda a sua urgência narrativa, medo do
desconhecido e personagens reconhecivelmente humanos.
"The Children of Húrin" vai empolgar alguns leitores e deixar outros
desanimados, mas vai surpreender quase todo mundo. Se você está
procurando a acessibilidade, o lado lírico e acima de tudo o otimismo
de "O Senhor dos Anéis", bom, é melhor ir lê-lo de novo. Não há hobbits
nem Tom Bombadil, nada de estalagens aconchegantes na beira da estrada
e muito pouca alegria à beira do fogo de qualquer tipo. Esta é uma
história cujo herói é culpado de traição e assassinato múltiplo, uma
história de estupro e pilhagem e incesto e ganância e gloriosas
batalhas que nunca deveriam ter sido travadas.
Se "O Senhor dos Anéis"
é uma história na qual o bem vence o mal, esta aqui caminha
inexoravelmente para o outro lado.
Embora os leitores casuais de "O Senhor dos Anéis" possam se assustar,
"The Children of Húrin" não exige nerdice nível Silmarillion. Qualquer
fã médio de Tolkien com apetite pelos cantos mais escuros e estranhos
de seu reino vai se deixar prender rapidamente pela saga sangrenta de
Húrin, que desafia o temido Morgoth e é torturado sem piedade, e Túrin,
o guerreiro lendário cujos grandes feitos arrastam tudo e todos que ele
ama para o desastre completo. Ou, pelo menos, vai se deixar prender se
conseguir atravessar as primeiras páginas.
Inicialmente, "The Children of Húrin" tem aquele estilo empolado de
Tolkien em seus momentos mais emperrados. Esta é a terceira sentença do
capítulo 1: "Sua filha Glóredhel desposou Haldir, filho de Halmir,
senhor dos homens de Brethil; e na mesma festa seu filho Galdor, o Alto
desposou Hareth, a filha de Halmir". (Aliás, nenhuma das pessoas nessa
sentença aparece de novo.) Eu ainda precisei consultar os mapas,
índices e apêndices completos e muito úteis de Christopher Tolkien de
vez em quando para recordar a nomenclatura geográfica e genealógica – e
voltei a "O Silmarillion" algumas vezes para entender o contexto
histórico – mas me incomodei cada vez menos com isso conforme as horas
passavam e a luta terrível de Túrin contra o mal interno e externo
ficava cada vez mais horrenda.
As aventuras de Túrin se passam na "Primeira Era" da Terra-média de
Tolkien, uns 6.000 anos antes de Bilbo Bolseiro achar o Um Anel, de
forma que, fora algumas referências a Sauron, o lugar-tenente de
Morgoth, quase não há intersecção entre essa história e "O Senhor dos
Anéis". (Eu disse quase; preste atenção!) Túrin nasce num mundo em
guerra, onde a antiga aliança de Elfos e Homens está perdendo terreno
gradualmente numa longa luta com Morgoth, o qual lançou de sua
fortaleza em Angband o equivalente do mundo antigo das armas de
destruição em massa.
Ele conjurou ou criou ou perverteu uma raça de
demônios letais chamados Balrogs (um dos quais aparece em "A Sociedade
do Anel") e revelou um grande dragão chamado Glaurung, cujas armas
incluem tanto o fogo quanto o diálogo sarcástico. (Ele é provavelmente
o pai ou o avô de Smaug, que Bilbo encontra em "O Hobbit".) Logo depois
que as forças de Húrin e os outros grandes exércitos de Elfos e Homens
são estraçalhadas por Morgoth na Nirnaeth Arnoediad ("a Batalha das
Lágrimas Incontáveis"), o mundo ocidental é engolfado pelo caos. (Ainda
estamos muito no começo do livro, e eu não citei nenhum grande spoiler.
Mas saia agora se não quiser mais detalhes da trama.) Uns poucos reinos
élficos ocultos continuam protegidos, incluindo a fortaleza de
Nargothrond, a cidade secreta de Gondolin e a floresta de Doriath – uma
espécie de precursora de Lothlórien em "O Senhor dos Anéis" -, mas os
reinos dos Homens são tomados pelas forças de Morgoth.
Mandado para longe de sua mãe e de sua irmã ainda não-nascida quando
garoto, Túrin se torna o filho adotivo de Thingol, o rei élfico de
Doriath, e torna-se um guerreiro feroz quando adulto.
Mas elfos
imortais e homens mortais não se misturam com facilidade, e nem
Thingol sabe que Morgoth, que está mantendo aprisionado o desafiador
Húrin, colocou a família inteira do herói sob uma maldição horrenda.
Morgoth, aliás, não é só aquele típico demônio de romance de fantasia -
na origem, ele era o maior dos Ainur, os espíritos divinos que cantaram
com Ilúvatar e criaram o mundo. "A sombra do meu propósito jaz sobre
Arda [a Terra]", diz Morgoth, "e tudo o que está nela se inclina lenta
e certamente à minha vontade."
Ao contrário de Sauron em "O Senhor dos Anéis", o Morgoth de "The
Children of Húrin" aparece como um ser físico malévolo mas sofisticado,
tal como os deuses da mitologia grega e nórdica aparecem para os seres
humanos. De fato, toda essa história apresenta uma visão sombria e
visceral da vida, muito mais próxima do fatalismo dos antigos mitos
europeus do que do bom-senso rural e inglês dos hobbits, que funciona
como base moral de "O Senhor dos Anéis".
Parte disso vem do fato de que "The Children of Húrin" é principalmente
uma história sobre seres humanos, sempre as figuras moralmente mais
ambíguas do universo de Tolkien. Embora seja claramente o herói da
história e um grande guerreiro de sua época, Túrin não pode ser
descrito adequadamente como bom ou mal. Como Édipo ou Siegfried ou o
herói do épico finlandês "Kalevala" (um dos modelos de Tolkien), ele é
definido pela nuvem escura do destino que jaz sobre ele. É amaldiçoado
por um poder grande demais para ser derrotado ou eludido, mas seu
próprio temperamento só torna as coisas piores, como uma mosca que se
sacode numa teia de aranha.
Ele é arrogante, cabeça-dura, de
temperamento explosivo e inclinado à violência, e os que o amam e se
tornam seus amigos são sugados por seu vórtex sombrio.
Túrin torna-se um famoso amigo-dos-elfos e matador dos Orcs de Morgoth;
no fim do livro, realiza um ato de heroísmo lendário, o tipo de coisa
sobre a qual as pessoas ainda estavam cantando baladas na época de
Frodo. Mas, ao longo do caminho, ele também se torna um fora-da-lei que
tolera banditismo e brutalidade entre seus homens, um conselheiro
prestigioso cujas palavras só levam à perdição, um homem que mata um de
seus melhores amigos e depois rouba o amor de seu outro amigo. (É claro
que ela acaba se revelando exatamente a mulher errada para ele,
responsável por selar seu destino.) Não fica muito claro se Morgoth
realmente precisa amaldiçoar esse sujeito; ele faz um serviço muito bom
ao amaldiçoar a si mesmo a cada passo.
Terminei "The Children of Húrin" com um apreço renovado pelo fato de
que a narrativa de Tolkien é muito mais ambígua em tom do que
normalmente se nota. Como já se disse várias vezes, ele era um católico
devoto que tentou, com sucesso imperfeito, harmonizar a violenta
cosmologia pagã por trás de seu universo imaginativo com a crença numa
salvação cristã. A salvação parece muito distante em "The Children of
Húrin". O que fica em primeiro plano é aquela sensação tolkieniana
persistente de que o bem e o mal estão travando uma luta maniqueísta
não-resolvida com fronteiras amorfas, e que o mundo é um lugar de
tristeza e perda, cujos habitantes humanos freqüentemente são os
agentes de sua própria destruição.